A Covid-19 apanhou o mundo de surpresa e abalou as certezas daqueles que, no conforto ilusório da Era da Técnica, se convenceram de que a globalização era a garantia da felicidade e da paz – o fim da História. Mas, afinal, “a mais maléfica das deusas” da Antiguidade chegou ao século XXI, trazendo o sobressalto da morte e da dúvida. Em busca de respostas, Jaime Nogueira Pinto percorre as pestes do passado, com erudição e clareza, analisando causas e consequências, num livro que nos prende e elucida.
“Contágios – 2500 Anos de Pestes”, que chegou às livrarias no passado dia 25 de Agosto, publicado pela D. Quixote, é o livro certo na hora certa. Num momento em que tanto se celebra o desconfinamento como se teme uma segunda vaga, continua a não haver certezas. A História é boa conselheira nestas matérias e uma pandemia é apenas novidade para os supremacistas do presente. Aqueles que preferem ser artificialmente inteligentes, conduzidos por aplicações informáticas, certos de que a marcha do progresso para um futuro melhor é imparável e inevitável, desprezam as lições pretéritas dos nossos antepassados, considerando que estes nada sabiam. Ligados à “rede”, mas desligados de qualquer sentimento de pertença a uma comunidade que se projecta ao longo dos tempos, perguntam, ignorantes e estupefactos – como é possível?
E se as dúvidas e as respostas de hoje forem iguais às de outrora? Serão os homens, na sua marcha histórica, entre a cobiça e a solidariedade, assim tão diferentes, afinal? Escreve Jaime Nogueira Pinto que, a propósito do insólito surto de peste bubónica no Porto em 1899, as tensões de outros tempos e lugares se reproduzem: “o alarmismo e o negacionismo; a urgência em anunciar e isolar a doença e o prejuízo para normalidade da vida e dos negócios que isso causava; a polémica acerca das medidas cerceadoras dos movimentos das pessoas e das mercadorias a adoptar; o choque de competências entre autoridades, entre o Governo central, de Lisboa, e as instituições e interesses económicos locais.” De facto, podia muito bem ser o relato do que vivemos com a actual pandemia.
História total
A compartimentação da História, feita num processo de especialização que mais se assemelha a uma linha de montagem industrial, não apenas afasta o leitor comum, não-académico, como impede uma visão global que nos permite interpretar o passado no seu todo, de modo a melhor compreendermos o presente e, quiçá, antecipar futuros plausíveis. Jaime Nogueira Pinto, autor de uma vasta e conhecida obra publicada, investigador sério e rigoroso, homem com uma larga experiência de vida e solidez de carácter, habituou-nos a sínteses do que podemos chamar História total, relacionando factos históricos com as artes e as ciências, em diferentes latitudes, e as mudanças sociais, políticas e culturais, nunca esquecendo os principais intervenientes – os homens e sua natureza imutável. É o caso de “Contágios”, um título que nos leva a uma interpretação extensiva, que ao longo de “2500 Anos de Pestes” nos mostra como as pandemias, da Atenas clássica à São Francisco do século passado, não podem ser separadas, dissecadas e autonomizadas no estudo se queremos entender o passado para melhor pensar o presente, infectado pela Covid-19, com todas as suas consequências e desenvolvimentos.
Da geopolítica à cultura
Conseguir uma narrativa fluida e até empolgante num livro com tanta e variada informação, num estilo sóbrio, mas onde não faltam as anedotas da pequena história ou as ironias certeiras, bem ritmado e sem rodeios, é prova do imenso talento deste autor, que consegue conciliar disciplinas num registo acessível ao público interessado. Não importa aqui fazer um resumo da obra, mas apenas dar algumas pistas que avivem a vontade de a ler. Nesta viagem, vamos com Tucídides até à Guerra do Peloponeso e ao relato da Peste de Atenas, mas também
até às questões bizantinas sobre a cólera de Deus que foi a Peste Justiniana. Na Idade Média, a Peste Negra chega com o grande comércio às ricas cidades do Norte de Itália e acompanha a Guerra dos Cem Anos e o Cisma Papal, inspirando o “Decameron”, de Boccaccio, ou os “Canterbury Tales”, de Chaucer. Nos períodos de pestes que se seguem, é durante longos confinamentos que Shakespeare escreve várias das suas peças, como “King Lear” ou “Macbeth”, por exemplo. Já nas guerras napoleónicas, é inevitável contar o tifo ao lado de Kutuzov e da resistência russa na vitória sobre Bonaparte. No século XIX, a tuberculose, ou Peste Branca, inspiraria a romantização da morte na literatura e na pintura. No século seguinte, a Gripe Espanhola segue-se à Grande Guerra e da “Waste Land”, de T. S. Eliot, nasce um mundo novo onde, mesmo com a revolução dos antibióticos, as pestes continuam. No final do século passado, a SIDA provocaria alterações sociais,
nomeadamente na aceitação da homossexualidade, impulsionada pela literatura e pelo cinema. E a Covid-19 vai fazer-nos olhar para a crise económico-financeira de 2007-2008 e pensar como será o “admirável mundo novo”, nomeadamente qual será o papel do Estado e das nações e o futuro do liberalismo e da globalização neste desafio presente.
Da capa e do livro
Diz o ditado que não devemos julgar um livro pela capa, mas neste caso é impossível. “O Triunfo da Morte” (c. 15
62), de Pieter Brueghel, o Velho, é uma daquelas obras de arte a que é difícil ficar indiferente. Por várias vezes o apreciei demoradamente, no Museu do Prado, em Madrid, detendo-me em pormenores que parecem escapar no movimento do conjunto. Para a capa de “Contágios” foi escolhida a secção inferior esquerda, macabramente chamativa, com o poder político prostrado no chão, impotente perante o esgotar do tempo e a cobiça do vil metal, na qual os mortos dominam os vivos nesta luta que vencerão inevitavelmente. A composição gráfica da capa é excelente, o que se reflecte no miolo. O texto é intercalado por duas secções de ilustrações a cores, não está contaminado pelo chamado Acordo Ortográfico de 1990, graças ao autor, e a obra fecha com uma bibliografia seleccionada e um útil índice onomástico. Pormenores que importam, porque um livro não se mede apenas pelo conteúdo, mas também pela forma.
A Filosofia e a praga
Mas pare que serve, então, todo este conhecimento? Escreve Jaime Nogueira Pinto que, perante a praga, o estóico imperador romano Marco Aurélio lembrava a pergunta de Epicteto: para que servia a Filosofia se não nos preparava para a doença e para a morte? E escrevia: “Como é possível suportar bem a febre? É não culpar Deus nem os homens; ficar imperturbável perante tudo o que acontece, antecipar a morte, bem e com natureza, fazer tudo aquilo que tem de ser feito. Quando o médico chega, não se alarmar com o que ele diz, mas também não se rejubilar se ele disser – está tudo bem!” Sábias palavras que nos devem guiar nestes tempos em que os soundbytes e a cultura do scrolling impedem uma reflexão séria sobre a peste que nos atingiu.