Publicado em Junho de 2019, “Tóquio. Diário, 1946”, de Franco Nogueira, é uma pérola. Se esta frase afastar o leitor do meu texto e o levar até ao do Embaixador, dou o meu objectivo por atingido. Foi descoberta no arquivo doado pela filha ao Instituto Diplomático e é o registo de um jovem adulto, com 25 anos, no seu primeiro posto diplomático, do outro lado do mundo, num país devastado que renasce, ou não se tratasse da terra do Sol Nascente.
Em Setembro de 2018 li com muito interesse o artigo no “Público” sobre o espólio do Embaixador Franco Nogueira, a propósito da sua doação pela filha, Aida Franco Nogueira, ao Arquivo Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na descrição de uma massa acumulada de milhares de documentos, houve um diário inédito que impressionou a filha, mas que a mulher, Vera Duarte Wang, desvalorizou por não ter “nada de político” e ser “muito pessoal”. O Embaixador José de Freitas Ferraz, Director do Instituto Diplomático, que então teve a oportunidade de o ler, notou a importância do seu conteúdo, um “depoimento escrito por um diplomata que chega ao Japão a seguir ao fim da Segunda Guerra Mundial para o seu primeiro posto no estrangeiro”, e a beleza da sua forma, que descreve como “uma prosa muito cinematográfica, muito bonita”. Naturalmente, a minha curiosidade sobre a obra subiu ao nível máximo. A espera foi felizmente curta e, passado um ano, o diário chegou à estampa pela Tinta-da-China, com o prefácio de Freitas Ferraz.
O ‘meu’ Franco Nogueira
Todos temos uma versão pessoal dos autores e das figuras históricas que vai evoluindo connosco, com as nossas leituras e o nosso conhecimento. Lá em casa, Franco Nogueira era o diplomata talentoso e o biógrafo de Salazar. Nos meus tempos de precoce militância, era o resistente do Estado Novo que colaborara com a “Política” de Jaime Nogueira Pinto e o defensor de um Ultramar que na minha juventude já não fazia sentido. Só mais tarde, através de amigos que com ele privaram, tive um contacto indirecto com o homem por detrás da figura e passei a admirar – sem concordar necessariamente – o seu projecto de afirmação internacional de Portugal, em especial num tempo em que o nosso país nem sequer anda à deriva, antes segue a reboque. Mas só há pouco cheguei ao jovem crítico literário, através dos textos publicados ao longo de dez anos e reunidos no “Jornal de Crítica Literária”, editado em 1954, e me deslumbrei com o talento e erudição do homem de cultura e leitor perspicaz para quem apenas o talento interessava, de Aquilino Ribeiro a Fernanda de Castro. Este diário confirma que há ainda um lado desconhecido a que é possível chegar.
Pós-apocalipse
Alberto Franco Nogueira chega a Tóquio a 6 de Janeiro de 1946, poucos meses após a rendição japonesa, e no próprio dia inicia um registo da sua experiência numa cidade devastada onde a vida material, “para o indígena, é um inferno; vai subsistindo acampado por entre o entulho e a menos de meia ração”. Este é o pano de fundo para um ambiente que recorda os filmes de espionagem, com um hotel cheio de estrangeiros de todas as proveniências num bulício por negócios. Abutres? Segundo o autor, “o japonês ficou escavacado e pelintra. Mas há o ocupante, vitorioso e omnipotente, e esbanjador do que tem em abundância.”
Entre europeus, sente-se em casa. “Temos uma única raiz”, escreve, “somos da mesma raça e estivemos nos países uns dos outros; andamos nas mesmas cidades e comemos nos mesmos restaurantes. Falamos línguas diversas e estamos calhados em hábitos e gostos à parte; mas desabrochamos para à vida à sombra duma só matriz: a Europa”.
Mal chega à capital japonesa, Franco Nogueira encontra-se com Abranches Pinto, um português que residia há 30 anos em Tóquio, mas que “bem no âmago do coração afaga o sonho sebastiânico de tornar um dia a Portugal só para morrer”, e que será o seu guia nesta cultura que o fascina gradualmente. Portugal estendeu-se pelo mundo e este diário apresenta-nos disso várias provas, do intérprete que aprendeu a nossa língua no Brasil, ao marinheiro norte-americano, filho de madeirenses, que afirma com orgulho: “Eu também sou português!” Uma influência que não devemos menosprezar. Afinal, foi a um português da Califórnia que se deveu este diário, já que aconselhou o amigo Franco Nogueira, ao despedir-se dele em São Francisco, a “anotar as suas primeiras impressões ao chegar ao Japão”.
Não é apenas pelo local e as circunstâncias que o autor nos agarra, ele é um observador atento e a sua prosa descritiva e escorreita é elegante e cuidada. Sem referir os detalhes da sua missão diplomática, demonstra a sua acuidade em relação ao Japão que, “no seu íntimo, permanecia fiel e apegado ao seu Imperador, aos seus Deuses e à sua malga de arroz”.
Estuda a História nipónica, lê livros e jornais antigos, acompanha a política interna e vai conhecendo os hábitos sociais e costumes locais de uma cultura milenar tão diferente da nossa. No entanto, não há uma palavra sobre as bombas atómicas da “paz”… Passa três meses internado num hospital sem saber de que sofre, mas recupera e ficamos com a ideia de que foi atingido por um mal necessário à habituação ao país. A última entrada data do dia a seguir ao Natal e neste período de renascimento encerra o seu registo, depois de um ano numa terra em que o povo não se resigna e reconstrói o Japão.
Da edição
Porque nem só do texto se faz um livro, há a lamentar vários aspectos desta edição que muito deixam a desejar. Apesar de o diário não estar infectado com o dito Acordo Ortográfico, o prefácio está, numa esquizofrenia incompreensível. A magnífica fotografia da capa não está identificada, nada sabemos sobre a sua data, local ou autor, e fica a dúvida se haverá mais. São dados que enriqueceriam a edição, tal como imagens do diário original, ainda que dactilografado. Seguro de que o livro merecerá posteriores edições, até porque esta esgotou rapidamente, espero que as sugestões sejam bem acolhidas.
Percurso paradoxal
Como afirmou Jaime Nogueira Pinto na apresentação do livro, em 24 de Junho de 2019, foi a convicção de que a independência do País dependia directamente do Império Ultramarino “que levou o patriota constitucional e liberal Franco Nogueira a tornar-se, como defensor intransigente da unidade e integração nacional, um adversário da liberalizante evolução na continuidade de Marcello Caetano”. Concluindo: “a evolução do pensamento político de Franco Nogueira, a sua passagem do patriotismo liberal ao nacionalismo realista em função da própria evolução da questão nacional, pode servir de tema de reflexão e de caminho de esclarecimento para o momento político actual.” Pode e deve, acrescente-se. É por isso que o percurso paradoxal de um homem singular, bem como o seu passado, parecem um lugar estranho nestes tempos de uniformização e ignorância.