II
Quando se esperava que após a hecatombe da ribeira do Lys as tropas portuguesas pudessem finalmente repousar, eis que, logo a 13 de Abril, os «patrões» ingleses relançam duas Brigadas na frente. Por essa altura, os efectivos portugueses no teatro de guerra europeu rondavam os 34.600.[1] Dispersos por Divisões britânicas, estava-lhes reservado o indecoroso papel de «cavadores de trincheiras», tal o prestígio que o nosso contingente havia granjeado. Farto de ser mantido à margem das decisões militares pelo comando inglês, o general Tamagnini, envergonhado e de «saco cheio», resolve vir a Lisboa para conversações com o Executivo de Sidónio. Entrega o comando interinamente a Gomes da Costa e parte para Lisboa, a 3 de Maio, de onde só regressará a 13 de Junho mas sem qualquer sinal de resolução do problema.
Extremamente preocupado com o estado das tropas em França, o Executivo procura obter dos ingleses meios de transporte para as repatriar. E insiste que «não se trata do desejo de enviar reforços que não nos foram pedidos, escolhendo um momento que os nossos aliados consideram inoportuno, mas sim de fazer a substituição das forças cansadas e de habilitar assim, por dever de justiça e no próprio interesse do valor da nossa cooperação, o contingente português a desempenhar a sua missão».[2] Regressado ao front, Tamagnini, ainda mal tinha desfeito as malas, recebia do secretário-de-Estado da Guerra a acintosa comunicação de que iria ser substituído; e ainda teve, disciplinadamente, de aguentar até à chegada do seu substituto, o general Tomás António Garcia Rosado. Tamagnini ainda presencia o desfile de um contingente português nas comemorações do «14 de Julho». É de salientar o facto de as tropas portuguesas (e belgas), pelo seu desempenho na ofensiva alemã Georgette, terem estado prestes a ser excluídas da parada militar dos Aliados.[3] Sobre as operações no front, na entrada do seu Diário correspondente a 21 de Julho, Haig refere que o general Tamagnini fora almoçar consigo, acompanhado pelo general Charles Ker, chefe da Missão Inglesa junto do CEP. Para ilustrar a politização que dominava o Corpo português menciona que o chefe do estado-maior de Tamagnini tinha uma cifra privada, desconhecida daquele, através da qual comunicava directamente com o ministro da Guerra em Lisboa, passando por cima do seu superior. Afirma igualmente que Tamagnini sempre procurara agradar aos ingleses e que o general Gomes da Costa, que também regressara a Lisboa, lhe «parecia ser um excelente tipo viril, muito diferente da maioria dos oficiais portugueses».[4]
Por cá, com a chamada «crise das subsistências», a «anarquia mansa» como lhe chama O Século, a arrastar-se, o Governo resolveu estabelecer, para a mitigar e controlar, o regime de racionamento. As rações individuais passavam a ser fixadas ao nível da freguesia pelos regedores e pelos professores primários. Alguns meses antes,a 22 de Abril, tinha já sido decidida a criação de celeiros municipais para a constituição de reservas alimentares de emergência. O novo esquema que visava substituir a desequilibrada e quase anárquica situação de controlo dos fluxos alimentares, foi implementado em Lisboa a partir de 16 de Setembro de 1918, tendo a medida sido alargada ao resto do país a 23 do mesmo mês. Pioneira no campo social, desde o início do dezembrismo que a política sidonista procurava encontrar instrumentos de intervenção na defesa dos mais desprotegidos. A 24 de Abril o Decreto nº 4137 regulamentara o regime das casas económicas. No preâmbulo de fundamentção, citando-se Blanqui, considerava-se que «as questões sociais, interessando particularmente as classes proletárias, são hoje de palpitante actualidade em todos os povos cultos». Tinham igualmente imposto preços máximos para as rendas habitacionais e determinado que «os bairros ou grupos de casas económicas serão em regra constituídos por casas isoladas para uma só família», ficando as mesmas isentas de impostos; logo de seguida fora aberta uma linha de crédito para a construção de casas baratas para operários em Lisboa e no Porto. A 9 de Março fora publicado o regulamento da lei dos desastres de trabalho e, dois meses depois, fundado o Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e de Previdência Geral. A Casa Pia e a Misericórdia de Lisboa recuperaram a autonomia, embora continuassem sob a tutela da Direcção-Geral de Assistência. Sob os auspícios do «Presidente-Rei», fora criada a Associação 5 de Dezembro, com o objectivo de ajudar os mais desvalidos, mitigando-lhes a fome através da distribuição de alimentos em cozinhas urbanas. A iniciativa ficaria para a História carimbada com a popular designação de «sopa do Sidónio».
Mas os problemas com a ordem pública agudizavam-se e Sidónio resolve promover uma nova remodelação no executivo. Tamagnini vai para as Finanças, sendo substituído no Interior por António Bernardino Ferreira; aparentemente, Egas Moniz, nomeado para os Negócios Estrangeiros e tendo influenciado Sidónio noutras escolhas para o elenco governamental, parecia ter roubado a Tamagnini o papel de figura mais influente no Gabinete.[5] Poucos dias antes da tomada de posse dos novos membros do Executivo, após ter detectado um núcleo de conspiradores «democráticos» em Lamego, o comandante da polícia do Porto, Sollari Allegro, desmontara uma trama revolucionária que se preparava para eclodir. Depois de efectuadas inúmeras prisões preventivas, ao desenrolar-se o novelo da conjura, foi possível encontrar vários planos de acção e esconderijos de armas da revolução anti-dezembrista em gestação. E a 12 de Outubro rebenta a insurreição, com parte de Infantaria 35 de Coimbra, sob as ordens do coronel Alexandre Mourão, a tomar conta da «cidade dos doutores». Das várias cidades comprometidas apenas Évora secundou Coimbra, tendo-se revoltado Cavalaria 5, cujo comandante, o coronel Pereira da Silva, fora morto pelos insurrectos. Tal como acontecera em Coimbra, o general comandante da Divisão local, Brás Mouzinho de Albuquerque, fora preso, tendo assumido a liderança do movimento revolucionário o ex-governador-civil imposto pelo 5 de Outubro, Estêvão da Cunha Pimentel. Operários e rurais sindicalistas foram armados e a anarquia instalou-se. A direcção dos revoltosos não conseguia controlar os sindicalistas que ameaçavam «cavalgar a onda» e assumir eles próprios uma «revolução dentro da revolução burguesa». Com a aproximação das forças do Governo, chefiadas pelo tenente-coronel Silva Reis, Pimentel decide escapulir-se. O mesmo fizera em Coimbra o coronel Mourão que desaparecera, descoroçoado com a indiferença das outras unidades militares da cidade.
Estrangulada à nascença, no Porto e em Lisboa[6] a revolução ficara-se pelas intenções. Reposta a ordem, seguiu-se o apuramento de responsabilidades e as respectivas sanções. E as prisões encheram-se rapidamente, sobretudo com «jovens turcos» e gente grada do partido «democrático», como o ex-presidente do Ministério José de Castro, o visconde da Ribeira Brava, eterno agitador dos complots, Daniel Rodrigues, o criador da formiga branca, ou o major Liberato Pinto, recentemente regressado de Moçambique «em desgraçada retirada». Em Lisboa, a sobrelotação das cadeias, nomeadamente a do Governo Civil, impunha uma distribuição dos detidos por outros locais como os fortes de Caxias e de São Julião da Barra. A transferência dos presos do Governo Civil far-se-ia por comboio a partir do Cais do Sodré, para onde se deslocariam a pé, em coluna vigiada. Assim, a 16 de Outubro, uma coluna com cerca de cento e cinquenta detidos, vigiados por algumas dezenas de guardas armados, saiu dos calabouços do Governo Civil. Quando atravessavam a confluência da rua Vítor Cordon com a Serpa Pinto, ao entrarem na apertada calçada do Ferragial, soaram dois tiros e, de repente, instalou-se o caos. Quer as bombas lançadas indiscriminadamente sobre a coluna quer o facto de Francisco Correia de Herédia (Ribeira Brava) estar na posse de um revólver quer ainda o conhecimento de que alguns detidos se tinham recusado a ir naquela leva permite suspeitar de que se tratou de uma tentativa de libertação[7] selectiva de alguns presos. Mas apesar de haver mais guardas mortos e feridos que detidos, entre os quais Herédia, isso não impediu que a imprensa adversa ao dezembrismo clamasse «Vergonha!» e denominasse o incidente, insinuando o propósito governamental de liquidação de alguns presos, como «a leva da morte».
Durante esse período conturbado, a sociedade portuguesa (e o mundo em geral) teve ainda que suportar o mortífero flagelo da gripe «espanhola».[8] De origem viral, provocada por uma estirpe do H1N1, era também conhecida como «pneumónica» já que, pelas suas consequências debilitantes, provocava infecções bacterianas ao nível das vias respiratórias. Teve a sua origem nos Estados Unidos, num aquartelamento do exército, Camp Funston, no Kansas, provavelmente no princípio de Março de 1918. O elevado contingente de tropas americanas que desembarcou na Europa durante o primeiro grande conflito mundial propagou a doença que rapidamente se espalhou por todo o globo tendo estado na origem de mais de 40 milhões de mortos; só na Índia pereceram cerca de 15 milhões de pessoas. Em Portugal, a pandemia provocou a morte, por causas directas ou indirectas, de mais de 150 mil pessoas, com um pico máximo em Outubro-Novembro de 1918, depois de um segundo surto. Apesar de não fazer distinção de classes, a verdade é que a pandemia afectou mais os pobres e os débeis. E Sidónio esteve sempre presente, incansável, junto do povo aflito que então o cognominou de «o grande pai dos pobres».
Às 11 horas, do dia 11, do mês 11, do ano de 1918 foram suspensas as hostilidades na frente ocidental da Grande Guerra, de acordo com o armistício assinado em Rethondes, na floresta de Compiègne, pelo marechal Ferdinand Foch e pelo representante alemão Mathias Erzberger. Os alemães tinham esgotado as suas reservas humanas, viam-se a braços com motins e insurreições revolucionárias por toda a parte, nomeadamente em Berlim, e não queriam de forma alguma que os aliados invadissem e ocupassem o seu território. E tinham resolvido solicitar a paz; dois dias antes, o símbolo do imperialismo militar, Ludendorff pedira a demissão e logo de seguida o kaiser abdicara partindo para o exílio na Holanda. Mas a cessação dos combates ainda não era a Paz. No próprio dia do armistício, Rosado entregava a Alves Roçadas o comando da 2ª Divisão, cujas forças tinham ainda de ficar de prevenção, disciplinadas e controladas na sua imobilidade, a aguardar transporte. Enquanto tudo isso se passava na Europa, em Moçambique só o fim da guerra parou a acção triunfal do cabo-de-guerra alemão Lettow-Vorbeck. A 1 de Julho de 1918 infringira uma tremenda derrota às forças anglo-lusas em Nhamacurra, a 40 km de Quelimane. O coronel Sousa Rosa (o jovem turco que reprimira o «movimento das espadas») foi então chamado à Metrópole e em sua substituição será nomeado Gomes da Costa, entretanto regressado de França, mas que só assumirá o comando quase no fim do ano.
Com o fim da guerra, mitigada a ansiedade popular pelo regresso dos familiares e recompostos os circuitos dos abastecimentos, importantes factores de condicionamento da atrição social, a popularidade de Sidónio continuava em alta mas ele próprio tinha noção do desgaste a que o regime estava sujeito.[9] O início do Outono de 1918, com o recrudescimento da «pneumónica», tinha sido o período mais contundente. Aqui e ali, as redes secretas pró-«democráticos» continuavam a preparar revoltas, protagonizavam atentados e criavam agitação. A máquina da repressão[10] não se deixava intimidar e as prisões iam-se enchendo.
De entre os próprios apoiantes do regime, sobretudo da parte dos mais libertários, já se ouviam palavras de censura. E longe iam os tempos do namoro com as associações sindicais, como a União Operária Nacional,[11] onde já se faziam sentir os ecos da revolução comunista russa. A 18 de Novembro, uma semana depois do armistício que pusera fim aos combates no front ocidental, os sindicatos mais radicais, numa resposta activa e musculada à política do governo, organizaram uma nova greve geral, a qual, apesar de ter alastrado para o dia seguinte, falharia rotundamente. Sidónio reprimiu-a preventivamente, ordenando a ocupação militar das estações ferroviárias e a detenção dos principais dirigentes; mas, sobretudo, «apagou-a» com a convocação de uma grande parada militar comemorativa do fim da Guerra. Para o evento convidou toda a população «patriótica e ordeira» que, de facto, compareceu em massa, retirando qualquer impacto ao movimento grevista.
A 5 de Dezembro sai de Lisboa a caminho de Paris a delegação portuguesa à Conferência de Paz, presidida por Egas Moniz que, para o efeito, suspendera interinamente a sua função executiva como ministro dos Negócios Estrangeiros. Era composta por Freire de Andrade, pelo nosso representante diplomático em Paris, Bettencourt Rodrigues, pelo conde de Penha Garcia, por Batalha Reis, nosso representante diplomático na Rússia, e por Álvaro Vilela. Portugal apresentava-se humildemente meio-envergonhado entre os vencedores. À histérica estratégia belicista dos governos «democráticos» que forçara Londres a aceitar-nos como parceiros de combate, almejando no fundo o maternal afago da Marianne francesa, Sidónio contrapusera um realista recuo táctico. Na elástica equação dicotómica onde assentava a nossa política externa da altura, resolvera repousar mais na organização inglesa da guerra, desinvestindo no desastroso modelo da autonomia do CEP, megalómano e irrealista, ao mesmo tempo que se aproximava de Madrid com intuitos aliancistas, como vimos. Não só «para inglês ver» como acontecera com Afonso Costa mas com sinceridade e empenho.
Tomando o pulso ao País, Sidónio pressentia a instabilidade e nem o toque a reunir dos seus oficiais mais fiéis o sossegava. A 6 de Dezembro, quando condecorava os sobreviventes do Augusto de Castilho que tão abnegadamente haviam cumprido o seu dever defendendo o vapor São Miguel do ataque de um submarino alemão, foi alvo de um atentado. O aspirante a assassino era um jovem de 19 anos, de apelido Baptista,[12] membro da Liga da Juventude Republicana e filho de um comerciante, filiado, tal como a maioria dos seus amigos, na «loja» maçónica Pró Pátria. A comoção entre o povo estremecido propagou-se como um rastilho e uma multidão em fúria, gritando palavras de ordem como «Abaixo a Maçonaria! Abaixo a cova de assassinos!», assaltou as instalações da Pró Pátria enquanto outro grupo atacava no Bairro Alto o Palácio do Grémio Lusitano, sede do Grande Oriente. Egas Moniz, a caminho de França, toma conhecimento, em Madrid, do frustrado ataque, depois da cerimónia protocolar de apresentação de cumprimentos a Alfonso XIII. Alarmado, prosseguiu no entanto a sua viagem cujo primeiro destino era Londres onde se ia avistar com Arthur James Balfour, o seu homólogo inglês.[13] Como Moniz tivesse ido além das suas instruções, solicitando apoio aos ingleses para «estender» Moçambique para o Tanganyika, Sidónio, ao ter tido conhecimento desse e de outros factos, lembrou-lhe que Portugal «devia apresentar-se na Conferência em atitude modesta e desinteressada».
Ultrapassado o episódio do atentado, eis que chegam do Porto notícias alarmantes sobre a agitação crescente não só entre os conspiradores «democráticos» mas tambjá entre elementos de núcleos dezembristas nas guarnições militares. Sidónio decide então ir ao Porto procurar acalmar a situação mas Sollari Allegro, o comissário da Polícia do Norte, procura dissuadi-lo. Consentiu apenas em adiar a viagem para assistir na Igreja da Encarnação, às exéquias pelos heróis do Augusto de Castilho. Quando decidiu partir, o seu ajudante, o capitão Eurico Cameira, ainda o tentou ludibriar, querendo levá-lo a apanhar o comboio em Alcântara, mas Sidónio, mesmo sabendo que o esperava uma manifestação adversa pretensamente organizada por famílias de presos, depois de uma ligeira hesitação, insistiu no Rossio. E é aí que, na tarde de 14 de Dezembro de 1918, o «Presidente-Rei», como ficaria postumamente cognominado para a História pelo punho de Fernando Pessoa, é assassinado por um militante do PRP. Antes do atentado, o seu autor, José Júlio da Costa, visitara o grão-mestre do GOL, Sebastião de Magalhães Lima, alojado no Hotel Francfort, ali ao lado. Em comum com as relações do jovem Baptista, Costa tinha o facto de pertencer a uma «loja» do GOL E para sempre ficou a suspeita de que a maçonaria tinha estado por detrás da morte do outrora «irmão» Carlyle que, durante 376 dias, «se atrevera a aliar-se com thalassas e clericais». No meio da maior comoção popular, as paredes apareceram pichadas com a quadra «Um Costa matou o Rei/ Outro Costa o Presidente/ E um Costa que eu cá sei/ Foi quem deu cabo da gente»; os seus autores faziam referência ao regicida Alfredo Luís Costa, a José Júlio da Costa, o assassino de Sidónio, e, obviamente, a Afonso Costa que era visto por muitos não só como o inspirador de tais acções mas também o grande responsável pela situação caótica em que o país se encontrava.[14]
Sidónio tinha-se mantido, no fundo, fiel à ideia demo-liberal em cujo espírito se formara como cidadão. A sua deriva presidencialista, se o marcara face à corrente de opinião dominante entre os republicanos portugueses, em que a preponderância do parlamentarismo era regra, nem por isso o tornava menos liberal nas suas convicções. Mas, estranho à supramacia dominante do PRP, o presidencialismo sidonista, apesar de ratificado por uma votação muito superior ao próprio número de recenseados nos cadernos eleitorais anteriores, merecia mesmo assim o labéu de «ditadura». E, na prática, a sua actuação no sentido de deter a Desordem e impor um outro rumo ao país, acabava contraditada pelo seu pensamento político de base que tinha por referência uma concepção estática, quase neutra, dos vectores políticos que dinamizavam a sociedade. Incauto, entendia que o «superior interesse nacional» seria suficiente para unir os portugueses, esquecendo-se de que essa expressão tinha já díspares leituras, de acordo com o posicionamento ideológico. E ficava muito surpreendido com a ingratidão dos adversários que, perdoados pela sua magnânima misericórdia, mal postos em liberdade, regressavam de novo a conspirar. Sidónio, pelo seu comportamento corajoso e pela justicialista praxis política surgiu como um cometa luminoso que pretendia impor um novo rumo na nação portuguesa mas o peso da sua «sombra» obscurecia o tão desejado «pensamento novo». E o seu «sistema», encerrando em si mesmo uma certa morbidade, estava condenado a desaparecer quando ele caísse. Como sempre acontece com todos os líderes que procuram conciliar forças díspares ou mesmo adversas sem as sublimar, o efeito aglutinador de Sidónio, o seu carisma, durou apenas enquanto ele existiu. Como diz Raul Brandão nas suas Memórias, «do grande partido que apoiava o Sidónio, ficaram, dum dia para o outro, meia dúzia de pessoas». Mas a semente da Ideia Nova, assente num poder pessoal e carismático, haveria de germinar mais à frente, numa janela de oportunidade única, em que os profetas do devir histórico iriam reconhecer, e apontar a dedo, um novo «messias», e igualmente lente da Academia de Coimbra.
NOTAS
[1] É sempre difícil validar estes números, dada a falta de critérios homogéneos na inventariação dos recursos humanos mobilizados no CEP, tendo em consideração, por exemplo, a falta de controlo rigoroso nas ausências por licença ou mesmo do aprisionamento pelo inimigo. E, por vezes, os dados referem-se a valores do quadro, isto é, do que deveriam ter mas que na realidade não tinham. De qualquer forma é comumente aceite como razoável esta ordem de grandeza.
[2] Cf. Portugal na Grande Guerra, op. cit., Vol. II, p. 66.
[3] A opinião generalizada sobre a prestação do Exército português era tão desfavorável que não fora a pressão junto do presidente Clémenceau, nomeadamente pelo seu chefe de gabinete, o general Mordacq, as tropas portuguesas não teriam integrado o desfile, no 14 de Julho de 1918, em Paris. Vd. MORDACQ, Général Jean Jules Henri – Le Ministère Clémenceau: Journal d’un témoin. Novembre 1918 – Juin 1919. Paris, Plon, 1931. Note-se que Mordacq, quando acompanhara Clémenceau na visita às tropas portuguesas no front, fora informado por oficiais do Estado-maior português de que dispunham de provas de que se poderia esperar para breve um grande ataque alemão mas que os ingleses, responsáveis pelas Informações, se obstinavam em ignorá-los. E até é possível que, para a atitude inicial de desconsideração francesa, as «hesitações» como lhes chamará Mordacq, tenham também contribuído as intrigas e desconfianças que davam o novo regime português como pró-alemão.
[4] Cf. The private papers …, op. cit., p. 320.
[5] No restante movimento de remodelação, Osório de Castro é substituído por Couceiro da Costa na Justiça, enquanto o tenente-coronel Álvaro de Mendonça assume a pasta da Guerra, até aí atribuída a Amílcar Mota. Também Mendes do Amaral cede lugar a Azevedo Neves, no Comércio. No dia seguinte, o capitão Cruz Azevedo tomará posse da então criada Secretaria-de-Estado dos Abastecimentos. Note-se que já antes, a 7 de Setembro, o vice-almirante João do Canto e Castro tinha assumido a pasta da Marinha, vacante pela saída, por doença, de Carlos da Maia.
[6] Em Lisboa ainda houve no dia 14 uma ligeira escaramuça entre civis armados e a polícia mas sem consequências significativas.
[7] Como acontecera, aliás, a 12 de Julho de 1917 quando a escolta que custodiava cerca de três centenas de presos, maioritariamente grevistas amotinados, fora atacada a tiro, tendo-se evadido muitos deles.
[8] A designação de «espanhola» ficou provavelmente a dever-se ao facto de a Reuters ter noticiado que o rei Alfonso XIII havia contraído a doença.
[9] Em Coimbra, a 30 de Novembro de 1918, Sidónio reconhecia que «têm surgido dificuldades de toda a ordem. O 5 de Dezembro foi um movimento feito por um grupo de homens alheios aos partidos políticos e, por isso, eu tenho hoje a hostilidade declarada das esquerdas ao mesmo tempo que falta o apoio das direitas».
[10] Na sequência da reestruturação dos corpos de polícia civil e do seu agrupamento num único corpo nacional, a Polícia Cívica, tinham sido criadas, em 27 de Abril de 1918, a Polícia Preventiva e a Polícia de Emigração, na dependência directa da Direção-Geral de Segurança Pública. A Polícia Preventiva, formada a partir de uma secção da Polícia de Investigação Criminal, tinha como funções a vigilância, prevenção e investigação de crimes políticos ou sociais, a prisão ou detenção de suspeitos daqueles crimes e a organização de um cadastro de todas as agremiações políticas e sociais e dos seus membros.
[11] A colaboração desta organização fora essencial na operacionalização do Decreto contra os açambarcadores, dirigida pelo alferes Jorge Botelho Moniz (quando tinha apenas 19 anos). Cf. A morte do Dr. Sidónio Paes e…, op. cit., p. 24. Mas pouco tempo depois, o Conselho Central da organização sindical já diz que «nada de razoável podem nem devem esperar as classes trabalhadoras de mais esta nova (?) situação política que o operariado acolheu com benévola expectativa».
[12] Luís Maria Baptista como o denomina a História de Portugal, dirigida por Damião Peres, op. cit., Suplemento (I), p. 197 ou Helena Moreira da Silva na página 20 da sua Monarquia do Norte – 1919, da colecção História de Portugal da Academia Portuguesa de História, publicada pela Quidnovi em 2008.
[13] Reuniu-se previamente com Eyre Crowe na presença de Augusto de Vasconcelos, que substituíra Teixeira Gomes em Londres, bem como do resto da delegação.
[14] Cf. GONÇALVES, Horácio Assis – Intimidades de Salazar: o homem e a sua época. Lisboa: Bertrand, 1972, p. 32.