Um dos propósitos da Alameda Digital é procurar dar voz, e palco, aos literatos poetas, sobretudo àqueles que por razões mesquinhas e facciosas foram remetidos para a vala comum do Oblívio. A poesia foi sempre a seiva da cultura mas, como lembrava José António Primo de Rivera «há alguns que perante o avançar da revolução julgam que, para conciliar vontades, convém oferecer as soluções mais tíbias; creem que se deve atenuar tudo o que possa despertar uma emoção ou assinalar uma atitude enérgica e radical. Que equívoco! Aos povos, nunca ninguém os motivou mais que os poetas, e ai dos que não saibam levantar, frente à poesia que destrói, a poesia que promete!».
Pronta a sair está uma antologia inédita dos poetas portugueses simpatizantes dos sublevados da última Guerra Civil de Espanha. Desde poetas como Pedro Homem de Mello, Tomás Vieira da Cruz e Azinhal Abelho a António Manuel Couto Viana e Amândio César. Com o destaque da quadra de António Corrêa de Oliveira que, enviada por telegrama a Franco salvou a vida ao tenente-coronel Rovira Pacheco, parente de José Pacheco Pereira: «Por quantas vidas em flor/Dei à Espanha, a Deus volvida,/Eu, Portugal, rogo à Espanha/Me dê, por Deus, esta vida. Ao glorioso Caudillo assim implora perdão desventurado oficial Esteban Rovira Pacheco o humilde poeta portuguez».
E, muito em breve, apresentaremos projetos retomados de escrita e crítica poética, deixando sempre aberta a possibilidade de intervenção dos leitores que a nós se queiram juntar. Temos para publicação várias antologias temáticas, nomeadamente os Cantos para Café propostos pelo saudoso «pianista» Rodrigo Emílio, com a colaboração da Fernanda Ludovice, bem como uma nova edição do Vestiram-se os Poetas de Soldados. Queremos também arrancar com os trabalhos preparatórios do estudo crítico dos poetas conversos do século XX, desconhecidos ou negligenciados. Provavelmente demasiada ambição para tão pouco engenho, mas sem audácia nada se começa…
Hoje, dia 1 de Dezembro de 2017, a Alameda Digital, para auspiciar o seu arranque, foi brindada pelo José Valle de Figueiredo com um poema inédito:
Tudo é composto de poemas,
do que muda e permanece,
tudo é composto de verso e reverso,
do que é vivo e falece.
Mas nem tudo o que é mudança
muda como acontece
quanto cresce e é criança.
Todo o mundo é composto de poesia,
ora se esconde e falece,
ora se vê e nos tece.
Com tudo se acende:
a palavra acesa no poema
faz-se à vida
– e vai além da vida.
NOTA DO AUTOR: Este poema é o primeiro de um livrito inédito que eu tenho e que se chama O REINO ILUMINADO.
José Valle de Figueiredo é nome grande entre a intelectualidade portuguesa que não se reviu no «processo revolucionário em curso» inevitavelmente decorrente do golpe militar de 25 de Abril de 1974. Apontado a dedo por Saramago, a partir do púlpito do Diário de Notícias, esteve na prisão e, posto fora, partiu para o desterro. Por aquelas ironias que só a imbecilidade justifica aparece na lista «Os homens que realizaram o 25 de Abril» do Centro de Documentação 25 de Abril, tal como Luís Sá Cunha. Volvido à Pátria, que se segurava por arames, ensimesmou-se no exílio interior, porventura a sua maior provação. A sua poesia, nada na sua Tondela natal e cultivada na amada Coimbra, tem os caboucos bem assentes numa gnose, abraçada à Cruz, de demanda do graal luso. A sua construção poemática parece revestida da «sacralidade dos arquétipos» de que fala o meu saudoso professor Fernando Martinho. Mas não se equivoque o leitor, o erguer das paredes da sua obra é feito sob a influência das aragens neo-modernistas, cheirando a Pound com salpicos de Goulart Nogueira. A sua colaboração na emblemática revista vanguardista Tempo Presente é disso denúncia e sinal. Na poesia de José Valle de Figueiredo perpassa uma indelével brisa de nostalgia passada, logo transmutada em saudades do Futuro. A tradição instrumental do poeta é de cunho intrinsecamente marânico, sem ressaibos de romantismo serôdio que rejeita com trejeitos poundianos. Em A (P)ARTE DA SAUDADE, no Lusitania, escreve:
Voltamos – mas já não voltamos.
Apenas regressa a parte da Saudade
derramada lembrança,
ainda criança,
de outra nova idade
Mas, na realidade, ele só se descobre verdadeiramente nessa «sofia» já o astro-sol mirava alto o contraciclo da expansão imperial; quando o poeta se remordia e desgastava na angústia de apanhar o comboio do quotidiano. De forma hábil, o seu verso procura contornar a mágoa da derrota, buscando refúgio na ilusão da fuga para o auto-exílio, num autêntico paradoxo de Zenão. Surgem então laivos de perscrutante orientalismo mas sem adornos nem artifícios de exotismo.
A obra de José Valle de Figueiredo foi em boa hora escrutinada e antologiada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, então sob a sábia direcção de António Brás Teixeira. Chama-se a obra O Seu a Seu Poema (1959-2002). Com um denso preâmbulo em que José Carlos Seabra Pereira (quem o poderia fazer senão ele?!), qual neurocirurgião, disseca e recompõe os delicados vasos da poética de José Valle de Figueiredo. Seabra Pereira, na recta final da «operação» realça «que seria injusto a desleitura da obra de José Valle de Figueiredo sob suspeita de instrumentalização militante por facção ideológica ou política». É claro que o recado é justo, e mais que justo, porque «é outra a índole verdadeira da sua poesia», como afirma. Mas, para espíritos menos bafejados que o do insigne académico coimbrão, fica ambíguo o destinatário da ressalva. Porque na integralidade da obra, não é possível desvincular a criatura do criador. José Valle é de facto um militante e se, como relembra avisadamente Seabra Pereira, a sua dimensão intelectual ultrapassa largamente a sua medida política, a verdade é que, para além do Requiem por Jan Palach,
poucos poemas «de intervenção» lhe são conhecidos. Porque sempre que entendeu necessário, José Valle soube agrafar-se à convulsa situação da Nação portuguesa; e mais que na aventura da epopeia, no compromisso militante que lhe exigia a solidariedade da vigília de armas. E é exactamente para «gerir a proporcionalidade» das duas vertentes, como sugere o próprio Seabra Pereira, que recordamos aqui dois belos poemas seus, mais dessa índole:
Pranto por Rafael Sanchez Mazas
(27/10/66)
Na arena de Espanha,
A uma hora sombria,
Vem a própria morte
Tecer a sua agonia
– Por Don Rafael Sanchez
O que foi fuzilado
E não morreu,
Novas rosas nascem na manhã,
Cara ao Sol, na sua camisa nova,
Bordadas por Espanha
A sua honra e a sua fidelidade,
Vêm o jugo e as flechas
A sua eterna cidade.
Vêm mulheres e crianças do Sul,
Camponeses de Castela,
Vêm de Teruel e Toledo,
Do Alcázar e de Santa Maria,
– Vêm para a grande faena,
Na arena de Espanha,
Quando a morte tece a sua agonia.
Amanhece de novo a sua vida
– Para Don Rafael Sanchez,
A morte veio, mas já morreu.
Cântico
(11/02/65)
Em cada flor
Que dia a dia renasce,
o canto negro de uma saudade presente:
esta foi uma carta escrita
ao amanhecer, depois do fuzilamento.
Uma bandeira desfraldada,
crianças, e crianças correndo,
os amados amando-se,
os anciães rindo e sorrindo
– na palma da mão,
o testemunho imenso e vermelho,
que não morre:
essa foi a cidade de todos os tempos,
o amor e o canto das bocas sadias,
a espuma de todas as ondas
o mar de toda a navegação.
(Onde está a barca da alegria,
dos amados amando-se,
das crianças e jovens mulheres
de todas as idades? Onde está?
Onde dorme a barca das manhãs despertas?)
Dia a dia renascem os beijos dados à noite,
em Toledo.
Meu caro Amigo, eu vou morrer,
mas comigo levo a luz de Abril
e as flores de Maio,
e as medalhas dos camaradas
mortos em combate.
Os dias passam pela morte dos tempos.
(Oh, como o tempo passa!)
Ao lado de cada flor da manhã,
uma camisa negra aguarda o corpo do mundo.