Permitam-me que comece a minha análise ao livro Ditadura ou Revolução? – A verdadeira história do dilema ibérico nos anos decisivos de 1926-1936 referindo-me ao seu autor que o faça citando as palavras de Jaime Nogueira Pinto, no Prefácio que faz à obra: “O autor é objectivo – não inventa factos para ter razões, nem os oculta para não as perder -, mas não é ideologicamente asséptico: tem valores, convicções e princípios que ficam bem patentes na narrativa”[1].
Estamos assim, na minha opinião, perante alguém que não é ideologicamente asséptico, pela simples razão que não é axiologicamente neutro, sem que isso todavia o conduza a confundir acontecimentos com intenções, desejos com a ocultação de realidades, interpretações com a adulteração da história. Nos tempos que correm não é coisa menor! Quando a verdade é tantas vezes alterada pela meia-verdade, quando a vontade de defender os nossos pontos de vista, só os nossos pontos de vista, nos impele a ignorar os pontos de vista dos outros, e quando para justificarmos os nossos actos – mesmo quando errados ou contrários aos ditames da justiça que dizemos defender – apagamos da História o que a ela também pertence, o Mundo fica sempre mais pobre. Infelizmente é a isso que temos assistido e o fenómeno não é recente. Foi assim (não será ainda?), quando para enaltecer o Renascimento e a chamada iluminação racional do homem se pretendeu ignorar o indesmentível legado do Cristianismo,
- Na defesa da Pessoa Humana;
- Na consideração de que todo o político tinha de ser legítimo e estar sujeito a limites[2];
- Na própria separação entre o Estado e a Igreja – realçada antes de todos por Cristo ao dizer que devemos dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus[3];
- No “ … lançamento dos fundamentos do Direito internacional moderno”[4],
E quando, em nome dos novos ventos, se pretendeu fazer tábua rasa de tudo quanto foi pensado e escrito na Idade Média, ao ponto da sua eventual evocação poder ser considerada ou sinal de inconcebível iliteracia ou grave crime contra a intelectualidade dominante[5].
Foi e é também assim, quando os arautos da Revolução Francesa, ávidos na sua insaciável vontade em fazer mundo novo à custa da destruição do que designaram e designam de mundo velho, propositadamente esqueceram e esquecem a Magna Carta, o Bill of Rights, de 1689, a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia (16 de Junho de 1776), a Constituição americana de 1787. Querendo ser vistos como únicos detentores da verdade, os exclusivos possuidores do pensamento correcto e os intocáveis portadores da boa nova, depressa se assenhorearam do Estado e das suas instituições, para em função do que diziam e dizem ser o bem público esconjurarem quem não os segue ou quase calarem quem pensa diferente e tem outra versão dos factos. Dizendo combater a censura, censuram pela imposição do silêncio ou pelas dificuldades que erguem a quem não pertence aos seus grupos e a quem não é subserviente, fiel seguidor do seu entendimento, das suas linhas de investigação, e ousa ter outro pensamento, nas escolas que ferreamente dominam.
É pois neste quadro, que um trabalho como o que agora surge pela mão de José Luís Andrade, merece ser lido, compreendido, discutido e difundido, pela simples razão de que ninguém pode seriamente dizer que conhece a História, se partes significativas da sua existência são ignoradas ou omitidas. Felicito-o como português, pela dedicação que dedicou à sua pesquisa, pelo relato detalhado que faz dos encontros e desencontros entre portugueses e espanhóis, entre 1926 e 1936, e, principalmente, por ter trazido à luz do dia o que, convenientemente, muitos queriam que continuasse esquecido no cemitério dos factos que não deveriam ser revelados.
Passemos agora, sumariamente, ao livro propriamente dito, começando por dizer, ao contrário do que à primeira vista se possa supor, que as suas páginas não são exclusivamente dedicadas a Salazar. Ainda que aquele que foi Presidente do Conselho de Ministros, de Portugal, entre Junho de 1932 e Setembro de 1968, seja uma figura central e incontornável ao longo da maioria das suas páginas, principalmente nas suas segunda e terceira partes, não identifico o livro como um livro sobre Salazar. Fazê-lo seria redutor face à informação que nele podemos recolher de muitos factos e acontecimentos que não tiveram em Salazar a sua origem, como se demonstraria eventualmente contrário aos objectivos a que o autor se propôs. Dito isto, e antes de analisarmos cada uma das partes em que o livro se encontra dividido, duas notas se nos afiguram pertinentes:
- A primeira, para assinalar que José Luís Andrade não ignora a importância dos protagonistas, nos acontecimentos por si descritos.
- A segunda, para realçar a ligação que o autor faz entre a situação política portuguesa e a espanhola.
- Quanto à primeira nota, importa referir que em “Ditadura ou Revolução?”, os acontecimentos não são filhos de pai incógnito, pelo que a sua análise é feita em directa ligação com quem lhe deu vida e consistência. Seguindo num certo sentido o que foi escrito por Ortega Y Gasset, para quem o homem não pode ser desligado da sua circunstância, José Luís Andrade, demonstrou-nos que os acontecimentos dificilmente poderão ser entendidos, se cruamente os desligarmos dos seus autores, dos seus promotores e dos seus executores. É uma evidência, mas o facto de o ser não anula a distinção que aqui devemos fazer, atendendo à circunstância de existirem vários historiadores que não só despersonalizam os acontecimentos porque têm do homem uma visão relativista e secundarizada, como ignoram por vezes, de forma cirúrgica, os protagonistas, para não beliscar a imagem sobre eles criada.
- Quanto à segunda, entendo ser de sublinhar o contributo dado por este livro, para esclarecer que não obstante a manifesta e objectiva interacção entre vários portugueses e espanhóis para derrubarem a Ditadura Militar portuguesa, os seus propósitos não obtiveram qualquer êxito. Numa descrição feita a par e passo dos saltos e sobressaltos, dos golpes e das tentativas de golpes, quer de dirigentes anarquistas, comunistas e socialistas em Espanha, para imporem o seu governo, quer de opositores portugueses ao regime saído de 28 de Maio de 1926, José Luís Andrade ajuda-nos a entender como o governo português de então soube ser imune à agitação no país vizinho e debelar os efeitos dessa agitação dentro das suas fronteiras.
É tempo de falarmos, como prometido, da estrutura do livro e daquilo que nos é detalhadamente oferecido em cada uma das suas três partes. Ou, melhor dizendo, daquilo que considero ser mais profundamente marcante e que nos ajuda a perceber que independentemente de simpatias ou proximidades valorativas, o autor não prescinde de ser rigoroso na evidenciação dos factos.
Na primeira parte, que tem como título “A Ditadura Militar” (pp. 57-135), destacaria:
- A comunicação feita por Espanha, doze dias depois do 28 de Maio, de que a sua representação em Portugal seria elevada à categoria de Embaixada[6].
- A manutenção das grandes linhas de orientação da política externa portuguesa, nomeadamente a salvaguarda dos interesse nacionais ao nível das colónias – posição, que era, como sabemos, sustentada pela I República e que nos levou inclusive a participar na I Guerra Mundial[7].
- A evidência dos muitos desencontros verificados entre os novos detentores do poder, numa demonstração de que se é fácil potenciar unidades pela negativa, já o é bem mais difícil quando o inimigo está derrotado e se revela necessário construir uma solução positiva[8].
- A preparação do caminho para a entrada do Governo de António de Oliveira Salazar, como Ministro das Finanças (o que viria a suceder a 27 de Abril de 1928, curiosamente um dia antes do seu aniversário[9]).
- E, por fim, uma aproximação de posições entre Portugal e Espanha, feita entre 25 e 29 de Julho de 1926[10], sob a delimitação de fronteiras e a resolução de conflitos abrangendo os barcos de pesca dos dois países, o que motiva José Luís Andrade afirmar que “de Espanha parecia soprar finalmente bom vento”[11]
Na segunda parte, intitulada “A Ditadura Nacional” (pp. 137-271), ficamos com uma percepção clara sobre:
- A conversão de Ditadura Militar em Ditadura Nacional, ou seja um governo que não obstante ser liderado, influenciado e, se quisermos, dominado pelos militares, adopta medidas de alcance político nacional nomeadamente através da acção legislativa (ainda que neste caso muitas dúvidas se tenham levantado sob a conformação constitucional dos decretos emitidos[12] – que estão aliás sempre recorrente entre o momento da revolução, a consequente “supressão” das regras constitucionais vigentes e a aprovação de um novo texto constitucional).
- A afirmação de Salazar, não apenas como ministro das Finanças, mas essencialmente como político capaz de reunir em seu torno o respeito e admiração gerais, um político que acredita ser guiado pela divina providência[13], uma afirmação que o guindaria à Presidência do Conselho de Ministros em Julho de 1932.
- A querela entre a concepção de Salazar quanto à necessidade de saneamento das Finanças Públicas, como condição essencial para relançamento da economia, e a posição de Cunha Leal, para quem o desenvolvimento económico do País era prioritário face às finanças[14] (questão que ainda hoje nos acompanha).
- Clara distinção entre Salazar, Mussolini e Hitler, não obstante a futura Constituição de 1933, de cunho claramente salazarista seguir, nalguns domínios, a legislação adoptada em Itália pelo regime fascista, nomeadamente à implementação constitucional do corporativismo.
- O lançamento das bases do Estado Novo, quase ao mesmo tempo que caía em Espanha Primo de Rivera e a Monarquia, dando lugar no país vizinho à II República.
- A adesão à União Nacional do que fora o primeiro Secretário-Geral do PCP.
- A sempre presente disputa entre Portugal e Espanha pelo domínio do mar.
- A velha questão sobre o iberismo, que do nosso lado era protagonizada, e de forma favorável às pretensões unionistas, por figuras contrárias à ditadura.
- Os múltiplos encontros entre os oposicionistas de cá e os radicais de esquerda do lado espanhol, numa aliança nem sempre devidamente identifica e que José Luís Andrade desvenda com uma particular minúcia. Uma minúcia que muito nos ajuda a compreender, aquilo que poderíamos classificar como um internacionalismo de raiz iberista, ante-câmara de outros internacionalismos vindouros para o qual a realidade de estado-soberano, e particular o estado-soberano português não fazia sentido.
Na terceira parte, que aborda O Estado Novo (pp. 273-419), identificaria na análise feita essencialmente os seguintes tópicos:
- A afirmação das linhas doutrinais do Estado Novo, espelhadas quer no programa da União Nacional, quer na nova Constituição votada em plebiscito, a 19 de Março de 1933. Nessas linhas doutrinárias não só imperava a afirmação do nacionalismo, bem como, seguindo os ensinamentos de Thomas Hobbes, a defesa e subordinação da liberdade à autoridade[15].
- A referência ao Acordo celebrado entre o governo português e o governo republicano espanhol permitindo a circulação entre cidadãos dos dois Estados, sem a necessidade de apresentação de passaporte[16].
- A indigitação de Hitler para Chanceler alemão (30/01/1933) e a criação da Falange Espanhola (29/10/1933), por José Antonio Primo de Rivera e o efeito que estas duas realidades tiveram – em particular a primeira – nos Nacionais-Sindicalistas de Rolão Preto. Creio a este propósito ser de assinalar o cuidado de José Luís Andrade em saber distinguir o pensamento, e principalmente a acção, de Rolão Preto e dos seus seguidores face a Salazar e aos princípios do Estado Novo[17]. Algo tantas vezes ignorado pelos facilitadores na colocação de etiquetas, mas que nos ajuda a compreender, uma vez mais, diferença entre o Estado Novo, ou se preferirem o Salazarismo, o Nazismo e o Fascismo.
- A demonstração de que os opositores de Salazar não questionavam a presença no Ultramar, surgindo mesmo o insuspeito Afonso Costa como um dos grandes defensores de um Portugal “uno e indivisível”[18].
- A identificação dos principais acontecimentos que em Espanha anunciavam o desencadear da Guerra Civil (1936-1939) e o esclarecimento quanto à forma como do lado de cá da fronteira os opositores do estado Novo se posicionaram e constantemente interagiram com os protagonistas a Frente Popular espanhola.
Devo concluir dizendo que o livro de que aqui lhes falei e cujas páginas tive o privilégio de ler, não é, quanto a mim, apenas um livro sobre o passado. Poderia sê-lo e teria o mérito de nos conduzir por caminhos pouco conhecidos, nomeadamente os caminhos que permitiram a circulação entre portugueses e espanhóis durante os dez anos que se sucederam ao 28 de maio de 1926 até ao início da Guerra Civil Espanhola, que teve como desfecho a subida de Franco ao poder. Poderia também sê-lo, porque nos ajudaria a compreender melhor a diferença entre o antes, o durante e o depois das mudanças de regime, em Portugal e em Espanha. Poderia ainda sê-lo porque nos permitia perceber que do lado oficial português, independentemente de simpatias ou proximidades ideológicas, vingou durante esse período o pragmatismo realista nas relações com Espanha. Um pragmatismo que não impediu Portugal de defender os seus interesses junto do governo de Primo de Rivera e não o impediu, nem inibiu, de celebrar acordos com os republicanos que posteriormente lhe sucederam. Pode-se gostar muito, pouco ou até nada, desse período da história portuguesa, mas não se pode, seguramente, ignorar os factos e as razões que lhe deram origem.
Mas este livro não é, repito, apenas um livro sobre o passado. Ele é um testemunho que, a partir desse mesmo passado, nos ajuda a reflectir sobre o presente e sobre o futuro de Portugal. Afirmo-o por uma razão muito simples e sem qualquer adesão a supostas teorias da conspiração, para as quais não possuo nem engenho, nem tempo e muito menos vocação. E a razão é a seguinte: a nossa história é, sempre foi, uma história de encontros e desencontros com Espanha. Foi assim durante a Monarquia, não deixou de o ser durante a I República, continuou a sê-lo durante o Estado Novo e desiluda-se quem pensa que deixou de o ser após a Implantação da III República e mesmo com a nossa adesão à CEE, hoje União Europeia. É certo que os tempos são outros, é certo que não há exércitos à porta das nossas fronteiras a ameaçar a nossa independência e é certo que a Espanha é actualmente o principal destino das nossas exportações. Tudo isso é certo e não pretendo nem questioná-lo nem esquecê-lo. Sou um grande defensor das boas relações com os nossos vizinhos e até penso que há muito mais a fazer em múltiplos e variados domínios, se os portugueses o quiserem e os espanhóis o desejarem.
Não é no entanto menos certo, que no momento em que muitas capitais da União Europeia falam assumidamente de uma Europa com um pelotão da frente, considerando-se que nesse pelotão, ao lado da Alemanha, da França e da Itália, deve estar a Espanha, nos devemos serena e seriamente questionar sobre se a ausência cada vez mais evidente de centros de decisão nacional (veja-se a título de exemplo, o que sucedeu ao nosso sector financeiro), não alterará profundamente a nossa relação com o reino de Filipe VI. O futuro dirá se a minha dúvida tem validade, mas o que vejo no presente não me tranquiliza!
NOTAS
[1] JAIME NOGUEIRA PINTO no «Prefácio», in JOSÉ LUÍS ANDRADE, Ditadura ou Revolução? A verdadeira história do dilema ibérico nos anos decisivos de 1926-1936, Alfragide, Casa das Letras, 2017, p. 22.
[2] Consideração indissociável da nova concepção do próprio poder político. Cf. a este respeito PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, v. I, reimp. da edição de Setembro de 2007, Coimbra, Almedina, 2016, em particular, pp. 98-99.
[3] Cf. Mt. 22, 2, in Bíblia Sagrada, 7ª ed., Lisboa, Difusora Bíblica, 1976, p. 1320.
[4] Cf. MARCEL PRÉLOT, GEORGES LESCUYER, Histoire des idées politiques, 14ª éd., Paris, Dalloz, 2001, p. 123.
[5] Contra esta perspectiva, e pretendendo demonstrar como muitos testemunhos da Idade Média, ao nível do pensamento político, são hoje de relevância não ignorável, cf. Jacques GOFF, Em Busca da Idade Média, Lisboa, Editorial Teorema, 2004.
[6] Cf. JOSÉ LUÍS ANDRADE, Ditadura ou Revolução…, cit., p. 87.
[7] Idem, ibidem, p. 91.
[8] Idem, ibidem, pp. 80-85.
[9] Nascido a 28 de Abril de 1889, Salazar faria 39 anos de idade um dia após a sua posse como ministro das Finanças.
[10] Cf. JOSÉ LUÍS ANDRADE, Ditadura ou Revolução…, cit, pp. 88-89.
[11] Idem, ibidem, p. 89.
[12] Sobre esta questão cf. LUÍS BIGOTTE CHORÃO, A crise da República e a Ditadura Militar, 2ª ed., Lisboa, Sextante Editora, 2010, em particular pp. 390-401.
[13] E, nesse sentido, identificado, quanto a nós, com o pensamento de santo Agostinho (não nos revemos na tese dos que o colocam na órbita do pensamento tomista, seguida, entre outros, por BERNARDO FUTSCHER PEREIRA, no seu livro A Diplomacia de Salazar (1932-1949), Alfragide, D. Quixote 2012, nomeadamente nas pp. 20-21.
[14] Cf. JOSÉ LUÍS ANDRADE, Ditadura ou Revolução…, cit, p. 166.
[15] Sobre os princípios orientadores de Salazar, que nortearam e conduziram o Estado Novo, creio ser de referir a interessante análise feita por FILIPE RIBEIRO DE MENESES, no seu livro Salazar, 2ª ed., Alfragide, D. Quixote, 2010, pp. 108-114.
[16] Cf. JOSÉ LUÍS ANDRADE, Ditadura ou Revolução…, cit, p. 288.
[17] Idem, ibidem, pp. 295-297, 304-305 e 325.
[18] Idem, ibidem, pp. 338-339.